segunda-feira, 29 de setembro de 2014

"Minha primeira vez" - por Clara em Lugar de Mulher

TW: estupro
Eu tinha 13 e era fã de Skid Row, Faith No More e Ramones. Pintava os cabelos de preto azulado, usava um piercing no nariz e era gamada num menino cujo apelido era Samurai.
Ele era mais velho, tinha uns 16, e não era da minha escola.
Tinha uma festa e seria na casa do tio de um colega.
Me arrumei toda linda & roqueira com aquele meu cabelo até a cintura e minha camiseta dos Ramones e fui. Cheguei e procurei Samurai de cara. Ele nunca tinha me dado bola, mas eu sabia que tinha crescido naquele ano e que ele talvez me notasse. Eu tinha até peitos! Vai que, né?
A casa tinha uma piscina e um bar lá atrás.
E foi pra lá que eu fui. Era onde estavam os meninos mais velhos, né? O que eu ia querer com os pirralhos da escola?
E foi lá que eu tomei minha primeira dose de uísque. E a segunda, e a terceira e outras.
E foi lá que eu finalmente consegui beijar o objeto do meu desejo, depois de tanto tempo.
E foi lá, no banheirinho da casa dos fundos ao lado da piscina, que eu fui estuprada.
Não foi o Samurai.
Mas os moços que lá estavam acharam que ora, se essa menina está bêbada e praticamente desacordada depois de vomitar muito, é claro que vamos passar a mão. Vamos levar pro banheiro. Vamos abusar e enfiar garrafas nela, porque ela não devia ter dado esse mole de beber tanto perto dos meninos mais velhos. Quem mandou dar mole?
Ainda me largaram de cara na pia e eu fiquei com o olho direito roxo.
Eu não sabia que a culpa não era minha. Eu não sabia que eles deviam ser punidos. FIquei com raiva e culpa. Mas não fiquei com vergonha.
Segunda-feira, quando cheguei na escola, a história tinha se espalhado. E sabe qual era a história?
A Clara é uma vagabunda e deu pra três no banheiro da festa.
TODA a escola estava falando isso, com exceção de uma garota mais velha, que me disse que eu não deveria ficar triste. Mas eu não estava triste, eu estava era achando todo mundo muito babaca e morrendo de raiva. Como é que essas pessoas estavam falando isso? Como é que elas podiam afirmar o que tinha acontecido? Por que ninguém me perguntou nada? Ora, era a Clara, a maluquinha, a filha de artista, a que não se importava com a opinião dos outros, devia ser verdade.
Esse foi o momento em que eu vi que o mundo era escroto. Esse foi o dia que eu lembro nitidamente de olhar pra toda aquela gente falando de mim no intervalo e pensar: NINGUÉM SABE NADA.
Com 13 anos eu fui estuprada.
Eu só falei pros meus pais anos depois porque achei que eles também me culpariam. Achei que eles ficariam putos comigo e que eu não poderia mais sair. Achei um monte de coisas erradas. A coisa mais errada disso tudo foi achar que a culpa tinha sido minha. Que eu não deveria ter bebido. Que eu não deveria ter ficado no meio desses caras. Que eu “ter peitos” e querer ser notada e parecer mais velha era parte do problema.
Eu só soube que a culpa não era minha muitos, muitos anos depois. Depois dos 15, depois dos 20, depois até dos 30.
Não vou entrar nos detalhes das sequelas emocionais que esse evento me deixou. Não vou contar de alguns traumas que tenho até hoje por causa de uns caras que muito provavelmente não têm sequer noção do que fizeram. Pode até ser que eles tenham família e filhos hoje, pode ser  que lembrem disso como “uma menina bêbada que zoaram numa festa”, coisa de adolescente.
Isso aconteceu há 22 anos.
Nada mudou. Acho até que piorou. Se tivesse acontecido hoje, eles provavelmente teriam registrado e espalhado, como fizeram esses babacas em Pinhal, no mesmo Rio Grande do Sul onde nasci.
E o que esses babacas estão dizendo?

O ciclo sem fim de culpar a vítima. 74 pessoas curtiram isso.Ela estava pedindo. Ela tinha bebido. Se ela foi para uma casa com uns caras é porque estava querendo.
Ainda não ensinaram os meninos a não estuprar. Ainda não ensinaram a eles que as mulheres não são corpos disponíveis. Ainda não ensinaram que quem cala não consente. Ainda não ensinaram que isso é crime.
Não, não são as meninas que têm que se cuidar porque “sabem como são os meninos” Não, isso não é instinto. Não, isso não é normal.
Isso é a nossa sociedade misógina punindo as mulheres desde cedo. “Tri de boa”, com outras meninas reproduzindo essa cultura nojenta de culpar a vítima, porque também não ensinaram a elas que pode acontecer a qualquer uma.
Isso tem que ter fim.
Contar a minha história depois de tanto tempo é romper com um silêncio que deveria ter sido rompido na época e que não deve persistir.
A culpa nunca, nunca, nunca, nunca, nunca é da vítima.
Toda a minha força e meu amor pra essa menina que foi estuprada por esses imbecis. Espero que ela esteja bem cuidada e tenha consciência de que a culpa não foi dela.
Não vai ficar tri de boa não, filhotes. Chega disso.
tags: cultura do estupro, estupro, impunidade, tri de boa o caralho

O que coloquei acima a reprodução completa do post "Minha primeira vez" da Clara no blog Lugar de Mulher
Pode parecer estranho eu copiar um post inteiro, mas nesse caso não tenho como retirar apenas partes. A maneira como ela narrou todo o contexto e as reflexões que fez a respeito me parecem muito importantes juntas para a compreensão. 
E, acima de tudo, coloquei o relato inteiro porque eu sei que aconteceram e acontecem inúmeros casos semelhantes e muitas vezes as vítimas nem sabem como colocar em palavras. Muitas vezes as vítimas de fato só descobrem que a culpa não é delas muitos anos depois. Casos de estupro, de abuso psicológico de cunho sexual, entre tantas outras violências que são colocadas como algo "normal", como motivo de status positivo - "os garanhões" fazendo a festa da maneira deles. E as "vadiazinhas que "só podiam mesmo estar querendo" tem de se virar para viver com as cicatrizes da violência pelo resto da vida.
Eu também cresci sendo influenciada pelo pensamento coletivo de que isso tudo faz parte da sociedade. Eu cheguei a pensar "poxa, mas com uma roupa dessas também ela está pedindo pra ser atacada". Mas hoje eu SEI que os homens e os meninos não são animais selvagens que não podem ver "um pedaço de carne" - as mulheres e meninas - e não  atacar. 
Os homens andarem sem camisa - só de bermuda - está tudo certo, porque então as garotas não poderiam vestir regata e andar de shortinho pra sobreviver ao calor que está abrasando a todos os seres humanos da mesma maneira. Esse é um exemplo pequeno e bobo, mas que mostra também a linha de pensamento mais comum. Assim como os dois exemplos que citei na atualização desse post.
Para Reila Miranda, chef e coordenadora do espaço Casa da Borboleta, que apoia o parto humanizado e a maternidade ativa, as tentativas de proibir a amamentação em público estão ligadas a uma visão deturpada do corpo da mulher, em que mostrar o seio para alimentar um filho é um ato sexual.
— Constrange uma mulher amamentar uma criança porque é mais bonito abrir a bolsa e dar uma mamadeira, em vez de expor o seio. Porque essa é uma parte do corpo para o sexo, mostrada durante o Carnaval, de acordo com essa cultura em que vivemos, em que tudo é objeto.
A opinião de Reila condiz com o relato de Priscila.
— Quando o caso saiu na mídia eu recebi recados no Facebook de homens pedindo para mamar também.
A coordenadora da Casa da Borboleta considera chocante a necessidade de um projeto de lei, proposto no final de 2013, que prevê multas a locais que tentem impedir uma mulher de amamentar, e recomenda que as mães fiquem munidas de informações para que, caso abordadas de maneira constrangedora, não sejam privadas de seus direitos.

É triste e degradante, mas não precisa continuar assim. Por isso eu tenho procurado conhecer mais, dar meu apoio e divulgar projetos como o HeForShe. Meu desejo é que desde já ninguém mais sofra com isso e que mudemos para as próximas gerações não precisarem conhecer situações como essas. 

A humanidade merece algo melhor do que cultivar a violência.

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